
A Luz Que Se Apaga, a Amizade Que Brilha
Entre luzes de velas, brindes improvisados e gestos simples, o caos dá lugar à empatia e ao calor humano, mostrando que, na ausência da tecnologia, o que realmente nos ilumina são os laços que criamos uns com os outros.
PROSE
4/29/20256 min read
Era cerca de 12h30. Trabalhava tranquilamente em casa, com as janelas abertas, embalado pela suavidade de uma melodia que se desenrolava no ar, quando, subitamente, a luz apagou-se.
Saí para a rua, curioso, e logo o meu vizinho italiano espreitou pela janela:
— O que se passa? Não há energia?
Eu mesmo procurava essa resposta nos rostos inquietos que apareciam pelas varandas e passeios. Não me recordava de uma situação assim, tão comum nas terras africanas de onde venho, mas tão rara por estas bandas.
Num primeiro momento, pensei que fosse apenas um corte no bairro, mas, à medida que o tempo avançava, as notícias chegavam: tratava-se de um problema nacional, ou pelo menos, em todo o Portugal continental.
As ruas começaram a encher-se de murmúrios e olhares ansiosos. O desespero era visível, como se a cidade tivesse perdido o seu ritmo, o seu compasso.
Eu, habituado aos caprichos da eletricidade das minhas origens, mantive a calma. Telefonei a um amigo, e decidimos sair à rua, à procura de algum restaurante que ainda atendesse, mesmo no breu da escuridão.
Fomos até um dos locais que frequento há anos.
O Jiló, antigo empregado da casa, viu-me ao longe e, com o sorriso de sempre, acolheu-me:
— O que desejas, filho?
A ternura daquele tratamento aqueceu-me a alma. Pedimos duas bifanas e dois portos-tónicos. A carne, bem temperada, e o fresco amargor do vinho tónico faziam esquecer, por momentos, o caos que se desenrolava lá fora.
Na hora de pagar, a surpresa: sem multibanco, ficámos em falta. Eu tinha 30 euros; a conta era de 31,80. O meu amigo, sem um tostão em numerário.
Com a simplicidade dos bons, Jiló sorriu e disse:
— Paga depois, filho. Confio.
De coração leve, seguimos até ao Terreiro do Paço. Encontrámos refúgio à sombra de uma árvore, num bar com vista ampla sobre o Tejo. O calor era abrasador. Pedimos mais portos-tónicos, tentando enganar o tempo. Depois, eu arrisquei um Black Storm, e o meu amigo, uma Margarita.
Sentados em bancos improvisados de madeira, deitámo-nos a contemplar o céu, entregues a conversas soltas sobre a vulnerabilidade da vida, enquanto a cidade, sem energia, parecia regressar a tempos antigos.
Mais tarde, despedimo-nos. O meu amigo, casado, regressava a casa onde a mulher, inquieta, já o esperava. Eu, sozinho, subi as escadas até ao meu apartamento. Senti fome. Tudo no meu lar era elétrico, e não podia cozinhar.
Chamei então o meu vizinho pela janela e pedi-lhe que aquecesse um molho de coelho que guardava no frigorífico.
Entrei e encontrei-os em ensaio: ele e os amigos, uma banda improvisada, enchiam o ar com acordes e risos.
Enquanto o molho fervia, brindámos com um Beirão. Conversámos sobre o possível caos das próximas horas — frigoríficos a descongelar, vidas suspensas no fio da energia.
O meu vizinho perguntou-me se tinha velas; tinha algumas, mas faltavam-me fósforos. Generosamente, deu-me um isqueiro.
Voltei ao meu apartamento com a panela quente nas mãos. Servi o coelho, abri uma garrafa de vinho branco ainda fresca e, entre garfadas, ouvi baterem à janela. Era o João, outro vizinho:
— Tens uma vela?
Entreguei-lhe uma, e falámos brevemente sobre a fragilidade dos sistemas que julgávamos tão seguros.
Ao longe, vi o vizinho italiano e os amigos partirem de carro, tentando enfrentar o trânsito sem semáforos — mas pouco depois regressou, já sozinho.
Convidei-o para um copo e para provar um queijo artesanal que trouxera de uma feira em Sintra. Ele, por sua vez, apareceu com fiambre, e, entre risos e fatias generosas, partilhámos os últimos pães do LIDL que ainda guardava em casa.
Nesses instantes, as pessoas que passavam dentro dos seus automóveis olhavam-nos, algumas sorrindo, outras como que a dizer “olá” com o olhar.
O sol começava já a despedir-se, tingindo o céu de dourado, quando uma jovem passou diante de nós, conduzindo dois cães que, curiosos, se precipitaram para junto da nossa pequena reunião.
O meu vizinho italiano acolheu-os com carícias, e assim a conversa nasceu naturalmente.
Perguntei-lhe qual era a raça dos cães e, depois, se vivia na vizinhança.
Respondeu-me com uma delicadeza quase tímida.
Curiosa, perguntou se morávamos mesmo ali, em frente ao prédio onde estávamos sentados.
Sorri, sem vontade de responder, pois parecia evidente, mas o meu vizinho adiantou-se e confirmou.
A dada altura, mencionou que fazia parte de uma banda. A jovem virou-se então para mim, querendo saber o que fazia da vida. Hesitei. Dizer que era escritor parecia-me grandioso demais para aquele instante tão simples, e acabei por responder somente:
— Faço um pouco de tudo para viver... e para me aguentar no sistema.
O vizinho italiano, curioso, perguntou-lhe qual era a sua ocupação.
Ela respondeu, com um sorriso sereno, que geria um restaurante que em tempos pertencera aos pais.
Quis saber de que restaurante se tratava. Foi então que mencionou um que ficava logo ali, na rua do Museu do Fado.
Baixou-se ligeiramente, puxou do telemóvel e mostrou-me uma fotografia do espaço.
Reconheci-o de imediato — era o restaurante onde trabalha o Jiló.
Perguntei-lhe se o conhecia. Ela sorriu, como quem encontra um velho conhecido, e disse:
— Claro, é meu empregado.
Depois, fitando-me com atenção, como quem procura nas feições de alguém uma lembrança antiga, acrescentou:
— Acho que já te vi por lá.
— É bem provável — respondi —, costumo ir lá com frequência. Sou fã da bifana deles.
Antes de se despedir, contou-nos que se tinha mudado para o bairro há cerca de dois meses. Apontou-nos a sua casa e até o andar, mas confesso que já não me recordo. Acenou-nos um “adeus” e seguiu caminho com os cães.
O meu vizinho italiano aproveitou a luz que ainda restava para ir ter com a namorada. Fiquei sozinho.
Com as velas acesas e a brisa da noite a entrar pelas janelas abertas, deitei-me no sofá.
Foi então que a vizinha Isabel bateu à porta. Queixava-se de que o rádio tinha deixado de funcionar.
Como ouvinte habitual desde miúdo, percebi de imediato que o problema eram as pilhas gastas. Troquei-as e o rádio voltou à vida. Ela, embora visivelmente ansiosa com tudo o que se passava, regressou ao quarto. Aos 93 anos, era natural que se sentisse assim.
Tentei repousar, mas o sono tardava.
Os vizinhos indianos da casa ao lado — pelo menos seis numa só casa — estavam na rua a conversar animadamente, em voz alta.
Peguei numa vela acesa e levei-lha, pois reparei que estavam às escuras, sem luz nem lanternas.
Poucos minutos depois, recolheram-se. E foi então, finalmente, que consegui fechar os olhos e descansar um pouco.
Enquanto a noite avançava e a cidade parecia se render ao seu próprio silêncio, com as ruas iluminadas apenas por velas e lanternas improvisadas, uma sensação de calma invadiu-me. Talvez fosse o reflexo de saber que, em meio ao caos e à falta de controle, a simplicidade dos momentos compartilhados — um copo, uma conversa, um gesto de carinho — era o que realmente nos sustentava.
A cidade, sem energia elétrica, parecia mais viva do que nunca. A ausência de luz fazia brilhar o que, muitas vezes, passava despercebido: as pequenas interações, as trocas de olhares, as gentilezas. Mesmo nas horas de incerteza, encontrei-me rodeado de pessoas que, à sua maneira, mostravam que a verdadeira energia não vem das redes ou das máquinas, mas daquilo que conseguimos criar uns com os outros.
A manhã seguinte chegou, trazendo consigo o retorno à rotina, mas algo havia mudado. O tempo sem pressa, os gestos simples, a humanidade que se revela quando a tecnologia falha — tudo isso deixou uma marca que não se apagaria tão cedo. Naquele dia, a cidade, ainda sem a sua energia elétrica habitual, parecia ter recarregado algo muito mais profundo: a conexão verdadeira entre as pessoas.
E, ao olhar pela janela, já com o som da cidade a voltar ao seu ritmo, senti que, por mais que a vida siga seu curso com a mesma agitação de sempre, os momentos em que nos encontramos uns aos outros na vulnerabilidade são os que realmente nos fazem sentir, de fato, vivos.
Quais são as tuas impressões ?
Ecos dos Leitores
“Esse texto é lindo e reflexivo em todos os aspetos. Como alguém que viveu parte dessa experiência (história) devo dizer que a narrativa é excelente! Ela tem suspense ao mesmo tempo, é cómica e lá está “reflexiva”. Parabéns ao Autor”
- Digo Torres-
“Uma poesia muita linda feita de repente. Parabéns!”
- Carlito-