
Capitulo I — Entre a Solidão das Ruas e o Caos da Vida
Este é o início do romance Lisboa no Fio das Palavras. No capítulo, o protagonista se vê inesperadamente envolvido num encontro onde as linhas do passado e do presente se entrelaçam pelas ruelas de Lisboa. Em meio a uma introspeção profunda, ele revive momentos de leveza e emoção ao lado de duas mulheres que, de maneira única, deixaram uma marca indelével na sua vida.
4/18/202518 min ler
Hoje, despertei com os primeiros raios de sol, tímidos viajantes que se insinuavam pelas frestas da janela da cozinha, derramando luz dourada sobre a penumbra matinal. Movido pelo desejo de contemplar o espetáculo irrepetível de cada amanhecer, aproximei-me da vidraça. A minha visão estendeu-se para além do vidro, alcançando a imensidão do Tejo, onde as águas, quase inquietas, refletiam um céu ainda adormecido. Mais adiante, um campo selvagem respirava com a frescura do orvalho, os arbustos florescendo a cada sussurro da chuva, num convite silencioso à vida que ali se aninhava.
Ao abrir a janela, uma brisa matinal, impregnada do aroma, a terra molhada e erva fresca, beijou-me o rosto ainda entorpecido pelo sono. No ar, os pássaros, ocultos entre as ramagens, entoavam a sua ode ao renascimento do dia. Era como se cada nota da sua sinfonia trouxesse a promessa silenciosa de uma primavera prestes a florescer. No horizonte límpido da Lisboa que amo, o sol desenhava, com pinceladas de luz, o prenúncio de novas histórias, de novos destinos por desvendar.
Sentei-me no parapeito da janela, entregando-me àquele instante efémero de paz. De olhos cerrados, enchi os pulmões com o perfume da manhã, como se quisesse aprisionar em mim a essência pura desse momento. Lisboa desabrochava em toda a sua magnificência, e ali, suspenso entre sonho e realidade, fui despertado pelo rumor distante da cidade que nunca dorme. Era a rotina, a velha sentinela, chamando-me de volta ao compasso do quotidiano. O dever espreitava, e eu, prisioneiro da engrenagem social, não poderia ignorar o seu chamamento.
Ao sair de casa, envolvido pela suavidade do clima, fiz uma pausa no café da esquina, onde a manhã se adensava em conversas murmuradas e o aroma do café acabava de moer. Com a serenidade de quem prolonga os minutos antes do inevitável, sentei-me no terraço, observando o sol que, hesitante, rasgava as nuvens e fazia cintilar a pele líquida do Tejo. Saboreei, como um ritual sagrado, uma sanduíche de pão de deus, o queijo e o fiambre fundindo-se sob o toque morno da manteiga, enquanto um galão fumegante e um sumo de laranja desenhavam na boca a doçura tranquila da manhã.
Os meus olhos, vaguearam pela azáfama das ruas. Crianças refilavam ao serem arrastadas para a escola, num eco dos meus próprios dias de menino, quando a minha mãe, a doce Oga, me conduzia apressada pelas vielas para que não chegasse atrasado. Perdi-me, então, na silhueta de uma mulher que passava. O rosto, enevoado pela distância, carregava a graça antiga das eras que já não voltam. A elegância com que se movia, a dignidade dos seus trajes, evocavam tempos em que o pudor era uma jóia rara, resguardada com o mesmo zelo com que os monges velavam os seus templos sagrados.
O tempo, contudo, não se deteve por mim. O relógio avançava, e no visor do telemóvel, o Google Maps anunciava a iminência da chegada da minha camioneta. Engoli os últimos vestígios do pequeno-almoço, paguei apressadamente e corri para apanhar o 759. Ele chegou com a pressa habitual, deslizando pela estrada, como se quisesse recuperar minutos perdidos. A bordo, fui sacudido pelos solavancos que compõem a coreografia diária dos transportes lisboetas. O destino era a estação de Santa Apolónia, onde o metro me aguardava, pronto a engolir mais um passageiro rumo à sua jornada matinal.
Na paragem do Terreiro do Paço, uma mãe e o seu filho entraram. O pequeno, de rosto franzido pelo sono, viu-se separado da mãe pelos lugares ocupados. Levantei-me de imediato, cedendo-lhe o meu assento, pois sempre me entristece ver uma criança afastada do calor materno, ainda que por breves instantes. Não tardou para que o menino desabasse num pranto, enquanto a mãe, com gestos ternos, mas firmes, lhe limpava o nariz ferido. Com um beijo suave e palavras sussurradas, trouxe-lhe consolo e paz, lembrando-me, num lampejo de nostalgia, dos dias em que os braços da minha mãe eram o meu porto seguro. A saudade cravou-se-me no peito, uma lágrima resvalou-me pela face. Já lá vão dez anos desde a última vez que a vi.
Quando dei por mim, estava no Marquês de Pombal. O mundo retomava o seu pulso, e eu, como todos os outros, fui absorvido pela engrenagem do dia. Caminhei sete minutos até ao escritório, onde, ao entrar, saudei o guarda, que me retribuiu com um sorriso de velha cortesia. O trabalho, esse, esperava-me com a previsibilidade de sempre. Pequenas variações nos procedimentos, mas um âmago que se mantém inalterado, inamovível. Diz-se que somos a geração mais avançada de todos os tempos; contudo, pergunto-me se não seremos, paradoxalmente, a mais desprovida de imaginação.
Ainda assim, encontro algum consolo naquilo que faço. Há rostos que se cruzam, histórias que se entrelaçam, e, de quando em quando, um vislumbre de humanidade escapa-se entre as engrenagens do sistema. Mas a monotonia, essa, é inescapável. Durante oito horas, movo-me como um autómato, mergulhado em afazeres previsíveis, enquanto o reino da fantasia se vê silenciado pela obrigação do real.
Mas valerá a pena resistir? Trocar de trabalho seria apenas mudar de cela dentro da mesma prisão. Iludimo-nos com a ideia de liberdade, mas vivemos acorrentados a rendas, contas e obrigações. Há dias em que invejo o homem primitivo, que, sem morada fixa, sem amarras, fazia do mundo o seu lar. Migrava quando queria, caçava quando tinha fome. E nós, no auge da civilização, que temos? Uma liberdade desenhada a régua e esquadro, sempre limitada pelo preço que pagamos para existir.
Ao sair do escritório, decidi renegar o ventre subterrâneo do metro e entregar-me às ruas de Lisboa, deixando que os passos, longamente aprisionados sob a secretária, reencontrassem a liberdade do asfalto. Caminhei por vinte minutos, passando pelos Restauradores e pela elegante estação do Rossio, até emergir no Largo de Martim Moniz. Ali, sob o olhar indiferente da cidade apressada, agrupam-se jovens africanos, indianos e nepaleses, recém-chegados, não apenas a Lisboa, mas a uma espera sem fim. Sem documentos, sem morada fixa, ocupam o tempo como podem, aguardando a promessa fugidia de uma oportunidade.
Sob as lonas improvisadas e sobre os frios cartões que os abrigam quando a noite se fecha sobre eles, o silêncio conta histórias que a cidade finge não ouvir.
Por um instante, considerei apanhar o elétrico 28, mas ao ver a massa de turistas aglomerada na paragem, optei por um pequeno autocarro que percorre o mesmo caminho sem alarde, um segredo partilhado apenas por aqueles que conhecem Lisboa como se conhece um velho amigo. Desembarquei na Rua da Penha de França, onde as vozes das cerimónias religiosas se elevam para os céus.
Depois do culto, permaneci por instantes à porta, respirando o ar da noite, quando, num gesto casual de cortesia, cumprimentei duas mulheres. E foi ali que o destino, sempre pronto a surpreender-nos, alinhavou um novo capítulo. Uma delas irradiava extroversão, a outra era sombra e silêncio, envolta numa reserva natural que a tornava ainda mais intrigante. Entre palavras e risos, a simpatia desabrochou e, sem cerimónias, convidei-as para um jantar regado a fado. O “sim” ressoou como uma promessa, e num instante chamámos um Uber, partindo em direção ao Museu do Fado.
O motorista, um homem de olhar cansado, mas mente perspicaz, revelou-se um contador de histórias. Outrora empregado num dos maiores escritórios de contabilidade da cidade, vira-se despejado da sua posição pela pandemia, forçado a reinventar-se ao volante. “A vida é uma onda que se forma e desfaz sem aviso”, murmurou. As suas palavras evocaram as reflexões do grande sábio Salomão, lembrando-me de Eclesiastes 9:11:
“Os velozes nem sempre vencem a corrida, e nem sempre os fortes vencem a batalha… o tempo e o imprevisto sobrevêm a todos.”
A conversa deslizou entre nostalgia e aceitação, enquanto Lisboa, menina e moça, brilhava lá fora, com as suas luzes a bordar as margens do Tejo. Quando o carro nos deixou em Alfama, caminhávamos como personagens de um fado ainda por compor. Eram 23h45 e a cidade dormia aos poucos, o brilho das velas de Santa Luzia esmorecendo na distância. Em vez de ceder ao primeiro restaurante que nos chamasse, decidimos perder-nos na urdidura das vielas, subir colinas e descer escadas de pedra polida pelo tempo, respirando a alma antiga de Lisboa.
Na penumbra de Alfama, o fado já não ecoava como outrora. Poucas eram as casas abertas e, nelas, fadistas entoavam as dores do mundo em notas que pareciam cortadas do próprio destino. Rendidos ao cansaço e à fome tardia, escolhemos uma dessas casas, onde o vermelho e o branco das toalhas contrastavam com o negro solene dos empregados e artistas. O serviço era atencioso, os preços elevados, mas a experiência valia cada cêntimo.
Saboreámos molho de camarão e pão, enquanto um vinho tinto aquecia as palavras que trocávamos. Entregámo-nos ao fascínio da melodia, deixando que o fado nos guiasse por veredas de saudade. A cada nota, o silêncio da audiência tornava-se parte da música, um respeito profundo pelo sentir das cordas e das vozes.
Mas entre os versos da noite, algo me desarmou. As madames francesas, entre um gole de vinho e outro, confessaram que Lisboa lhes parecia excessivamente agitada. O espanto assaltou-me. Lisboa, para mim, é uma das últimas cidades onde a vida ainda pulsa com autenticidade, onde a hospitalidade se desenha em cada rosto e onde se pode comer bem sem precisar vender a alma ao luxo. Mas, em vez de contrariá-las, aceitei a sua visão como quem aceita a diversidade dos olhares sobre o mundo. Afinal, a beleza está na singularidade de cada experiência.
Quando o fado silenciou, senti que o momento pedia mais. As ruas chamavam por nós, e seguimos até ao Miradouro da Senhora do Monte. Sob as estrelas, Lisboa estendia-se como um tapete de luzes trémulas. Sabia que a noite se esvaía, e com ela, aquele encontro fortuito.
A despedida chegou sem convite. Levei-as até ao metro do Rossio e, sem trocar contactos, preservei a intangibilidade daquele instante. Poderia procurá-las nas redes sociais? Sim. Mas por que diluir o encanto num mar de mensagens voláteis? Preferi guardar essa noite como uma memória que permaneceria intocável pelo tempo.
Lisboa, na sua misteriosa imprevisibilidade, deu-me uma noite de encanto e de saudade antecipada. E assim, ao regressar sozinho na madrugada, compreendi que há encontros que devem permanecer onde aconteceram, como notas suspensas no ar, antes que o último acorde se desvaneça.
No dia seguinte, o primeiro dia de julho desperta sobre Lisboa, esplêndido e radiante. O sol, em sua infinita doçura, desliza suavemente sobre os rostos dos transeuntes, banhando a cidade com uma luz dourada que cintila nas fachadas antigas. Às treze horas, os terraços dos cafés e restaurantes fervilham de vida, repletos de almas errantes de todos os cantos do mundo, cada uma a carregar consigo histórias, sonhos e desilusões.
Não tive, contudo, a ventura de encontrar um lugar vago nesses refúgios ao ar livre, nem mesmo naquele pequeno restaurante italiano onde tantas vezes saciei corpo e espírito. Mas há um outro lugar, um santuário silencioso que nunca me nega abrigo, quer nos tempos de abundância, quer nos de escassez. Ao cruzar a soleira desse restaurante fiel, sinto-me afastar dos olhares curiosos que dançam lá fora, dissolvendo-me entre a sombra do restaurante e o brilho do dia além da porta.
O empregado de mesa, sempre atento, recebe-me com um sorriso cálido e conduz-me, sem precisar de palavras, à minha mesa habitual. E, como se o acaso tecesse encontros secretos entre as margens do imprevisto, eis que descubro, na mesa ao lado, um antigo colega de trabalho — Dr. Gustave, um homem que não apenas se destaca pela vasta cultura e espírito distinto, mas também pela elegância rara num tempo em que a juventude parece órfã de refinamento.
Ele é um dos poucos que ainda preservam a arte de bem se apresentar: cabelo meticulosamente alinhado, roupa impecavelmente passada, sapatos reluzentes — um contraste evidente com tantos outros, que vestem-se como se tivessem acabado de sair de um baú esquecido, calçados de tal forma encardidos que já não se distinguia sua cor original.
Brincando, costumo dizer que vivemos na era dos calçados sujos. Certa vez, cruzei com um jovem universitário que, pelo traje, parecia a caminho de uma defesa de curso ou alguma apresentação importante. A princípio, sua aparência era impecável — até que meus olhos pousaram sobre sua mochila desgastada e seus ténis imundos. Naquele instante, senti um arrepio de desconforto, como se a desordem nos detalhes traísse toda a intenção de elegância.
O empregado de mesa aproxima-se, atento, pronto para anotar o meu pedido. Não hesito. Peço um jarro de vinho tinto da casa — um brinde merecido à alegria inesperada deste reencontro. Entregue à leveza do momento, confio ao empregado a escolha do meu almoço. Sugere-me costeletas de porco com batatas. Aceno com a cabeça, sem grande interesse na refeição — já me sinto saciado pela conversa animada e pelas memórias que dançam entre nós.
Filho de uma angolana, Dr. Gustave carrega no olhar uma afeição profunda por essa terra, uma inquietação constante pelo seu futuro. Como em tantos encontros anteriores, mergulhamos em longas reflexões sobre o que poderia ser uma Angola ideal, traçando possibilidades entre os limites da nossa visão. Falamos de literatura, divagamos sobre pensamentos dispersos e, mesmo sem vontade, acabamos por tocar nas asperezas do mundo laboral.
Com pesar, ouço-o descrever a empresa onde outrora trabalhei como uma máquina insaciável, movida apenas pelo lucro, onde a humanidade dos trabalhadores se dilui na impiedosa engrenagem do rendimento trimestral. Partilho do seu desalento, pois bem conheço essa melodia de cansaço e alienação, esse ritmo cruel que reduz homens a meros números.
No auge da nossa conversa, já envolta numa névoa de desalento, o meu telemóvel vibra. No ecrã, um número desconhecido. Atendo, hesitante. Do outro lado, uma voz feminina, doce e familiar, diz-me, num tom quase travesso:
— É a polícia.
Franzo a testa, intrigado.
— A polícia? — pergunto, num misto de espanto e desconfiança.
Mas, antes que a dúvida se enraíze, a resposta chega num sorriso audível:
— Não, é a Elisabeth.
Ao ouvir esse nome, um arrepio percorre-me o corpo. Uma alegria intensa mistura-se a um inesperado constrangimento. Nunca imaginei este reencontro. As damas francesas, com quem partilhei momentos de leveza e riso, convidam-me para uma saída naquela noite. Fariam questão de custear tudo.
Por um instante, hesito. Conheço o orgulho francês e percebo que não querem ficar em dívida, nem mesmo com Deus. Sinto esse gesto de gratidão quase como um insulto, mas o desejo de as rever, de prolongar aquela história ainda inacabada, fala mais alto. Deixo de lado qualquer resistência vã e aceito o convite.
Despedimo-nos com um “até logo”, e ao desligar, encontro os olhos atentos do Dr. Gustave.
— Quem era? — pergunta, curioso.
Conto-lhe a breve história dessas mulheres que cruzaram o meu caminho e das horas agradáveis que passei na sua companhia. Ele solta uma gargalhada, batendo-me no ombro:
— Eis aí, Dom Carlos! A vida só tem valor quando partilhada. Estes encontros fugazes que Lisboa nos oferece são como sopros de oxigénio no meio da rotina.
Aceno, concordando.
— A mais pura verdade, meu amigo.
Mas Lisboa, por mais generosa que seja com os seus instantes de liberdade, não nos poupa do chamamento impiedoso da realidade. O tempo esgota-se, e o sistema que rege os nossos dias reclama-nos de volta, puxando-nos para o seu labirinto de obrigações.
Despedimo-nos com um abraço firme, e Dr. Gustave segue o seu caminho. Eu permaneço por mais um instante, contemplando o vazio da mesa à minha frente, até que o empregado se aproxima e tenta iniciar uma conversa. As suas palavras, embora pronunciadas em português, chegam-me como um murmúrio distante, impossível de decifrar.
Sorrio.
Ele insiste, apontando para uma mulher sentada à minha direita, mas a minha mente permanece enevoada, incapaz de compreender. Para evitar qualquer embaraço, mantenho o sorriso constante. Afinal, às vezes, um sorriso é suficiente para sustentar o frágil equilíbrio entre dois desconhecidos.
Despeço-me do empregado, com um último aceno, e regresso à realidade que me espera — um quotidiano moldado por oito longas horas de trabalho, onde o salário mal cobre o aluguer e pouco mais.
Mas, por ora, carrego comigo a leveza deste dia, os ecos da conversa com Dr. Gustave e a promessa de um reencontro à noite. E talvez, só talvez, isso seja o bastante para continuar.
No final do dia, um impulso irrefreável apodera-se de mim. Abandono o escritório, ansioso por saborear os últimos suspiros da tarde. Recuso-me a ser novamente engolido pelo turbilhão de corpos que se acotovelam no metro, nos autocarros ou nos carros que serpenteiam como um rio sem fim. Busco um equilíbrio delicado entre movimento e contemplação, entre a pressa e o deleite.
Deixo que o ar fresco me envolva ao descer a Avenida da Liberdade, essa artéria pulsante de Lisboa, onde as sombras generosas das árvores desenham arabescos na calçada, testemunhas silenciosas do bulício citadino. Pedalo serenamente, e os pequenos jardins que se abrem ao longo do percurso são como aquários de beleza, refúgios verdes que me arrancam um sorriso.
Nos Restauradores, uma breve pausa. Contemplo as esculturas que ali repousam, eternizando na pedra a memória de um nome icónico. Sigo para o Rossio, onde a estação ferroviária se ergue como um castelo de fadas, um sonho esculpido no tempo. Cada detalhe da sua fachada resplandece sob a luz dourada da tarde, fazendo-me sentir diante de uma tela vibrante, onde a história e a arte se entrelaçam como um quadro vivo.
Nos Armazéns do Chiado, estaciono a bicicleta e entro. Atravesso o espaço com passos leves, como quem revisita memórias. Aproximo-me do antigo café, agora envolto na atmosfera global de uma cadeia americana, mas que ainda guarda o sussurro de outros tempos. Escolho uma mesa junto à janela, com vista para a Rua Nova do Almada. Peço um chocolate quente e deixo que o aroma adocicado me envolva. Lá fora, o vaivém de pessoas cria um mosaico de culturas, um retrato vivo de Lisboa em toda a sua pluralidade.
Nos bancos de madeira envernizados, resistentes ao tempo e à mudança, vejo a persistência do passado. Pergunto-me o que os faz permanecer. A resposta surge-me como um sussurro: são elos entre o que fomos e o que somos, pontos de ancoragem para quem procura significado nos vestígios do tempo.
Aqui, a minha alma encontra repouso, embalada por sensações e devaneios. A inspiração, inevitável, conduz-me à escrita de um poema:
Entre Versos e Encantos: A Sinfonia da Alma
De ti, nasce a sinfonia que embala os meus dias, Melodias que dançam entre a brisa e a penumbra, Vestidas de primavera ou envoltas pelo inverno.
De ti, forjo memórias imortais, Fragmentos de encanto que desafiam o tempo, Histórias que vibrarão nos olhos do futuro, Como ecos entrelaçados no firmamento.
Aqui, onde a janela se abre para a Rua Nova do Almada, Dou vida a versos que se desdobram como flores em plenitude, Crónicas e prosas que ora se embriagam de riso, ora de dor, Reflexos da eternidade que pulsa em cada emoção.
Assim, com tinta de saudade e pena de esperança, Escrevo o poema da existência, entrelaçando almas, No compasso do tempo, no ritmo do universo, Elevando versos que se eternizam como um cântico divino.
Abandono os Armazéns do Chiado e subo ao Largo do Chiado, onde Lisboa respira memórias e segredos. Entre a multidão, ergue-se a figura esculpida de Fernando Pessoa, cuja presença é hoje perpetuada pelo bronze, tal como outrora foi pelos versos. Os turistas aproximam-se, disputam o privilégio de partilhar a sua mesa, congelando em fotografias um instante que julgam eterno. Atrás dele, A Brasileira exala um charme intemporal. O interior resplandece sob a luz quente, mas é no terraço que tudo acontece. Aqui, no coração de Lisboa, a vida pulsa ao ritmo dos passos apressados e das conversas efervescentes.
Junto à estátua de António Ribeiro Chiado, um artista de rua dedilha melodias latinas, espalhando notas que se entranham no ar como se fossem parte da própria cidade. Os acordes preenchem o espaço, e por um instante, todas as inquietações se dissipam na harmonia do som.
Uma voz feminina emerge da multidão, entoando um cântico de ritmos quentes. O público hesita, preso ao receio de se expor ao olhar alheio. Mas então, um idoso rompe o círculo, dançando com uma leveza que desafia o tempo. Pouco depois, a sua amada junta-se a ele, e o encanto é absoluto.
Como um rastilho, a coragem espalha-se. Mulheres puxam os seus companheiros para o centro, os risos misturam-se aos acordes, e até a cidade parece pulsar ao compasso da música. Entre os bailarinos improvisados, uma criança ensaia os seus primeiros passos, equilibrando-se entre a inocência e o ritmo. O momento é puro, efémero e inesquecível — um instante onde o tempo faz uma pausa para celebrar a vida.
Descendo pela Rua do Alecrim, detenho-me por instantes. A paisagem do Tejo revela-se à distância, um espelho de azuis e reflexos dourados. Algumas coisas na vida, percebo, só revelam o seu verdadeiro encanto quando vistas de longe. Mas o buzinar de um carro arranca-me da reflexão, e sigo para o Cais do Sodré. Ali, sento-me no cais, observando os barcos que sulcam as águas, carregando sonhos e destinos. A cada partida, as ondas agitam-se, a terra parece mover-se, e o ar enche-se de murmúrios e despedidas. Por um instante, todos seguem o barco com o olhar, até que este desaparece no horizonte. Mas há sempre a esperança do regresso.
Quando finalmente dou por mim, é hora de me dirigir às damas no local que ficou gravado na nossa memória como o lugar dos nossos adeus — a estação de metro do Rossio. Ainda a uma certa distância, avisto as minhas duas belas companheiras, vestidas de forma descontraída. Cumprimento-as com a mais pura delicadeza e respeito. No entanto, eu próprio estou vestido formalmente, uma vez que vinha do trabalho. Proponho então às madames francesas que passem por minha casa para eu poder trocar de roupa. Elas não recusam, e apanhamos um táxi em direção à minha casa, escapando assim do calor abrasador da tarde.
Em casa, enquanto me preparo, elas ouvem música clássica, talvez não por escolha, mas por ser a primeira seleção que aparece quando acedem à minha conta no Spotify. Elisabeth não esconde seu descontentamento com a música, afirmando que a deixa com sono, enquanto Raquel, como sempre, mantém-se em silêncio, reservando seus sentimentos, emoções e opiniões.
À medida que compartilhamos momentos juntos, mergulho cada vez mais nas intricadas camadas de personalidade dessas duas mulheres tão singulares. Elisabeth, com seu caráter extrovertido e uma pitada de ingenuidade, nunca afirma as coisas com certeza. No entanto, é essa ingenuidade encantadora que a torna irresistível. Conhecê-la é como navegar por um oceano sereno, onde os ventos sopram suavemente, trazendo consigo os aromas exóticos de um jardim distante. Na sua presença, encontro uma calmaria que acalenta a minha alma e desperta um genuíno regozijo.
Já Raquel é de essência reservada, uma mulher de gestos contidos e palavras raras, proferidas apenas quando a ocasião exige. Há nela um silêncio que não é vazio, mas repleto de significados ocultos, um mistério que se insinua sem pressa, despertando em mim uma curiosidade incessante.
Desvendá-la é como folhear um livro há muito esperado, onde cada página revela nuances inesperadas. Conhecê-la é embarcar numa travessia incerta, navegando por mares desconhecidos onde a linha do horizonte se desenha ambígua — ora sombria, ora fascinante — e a cada avanço, o desejo de decifrar seus enigmas apenas se intensifica.
Apressadamente, saímos de casa e dirigimo-nos à Rua da Santa Polónia, onde se encontra o Ferroviário, um bar com um ambiente resplandecente que proporciona uma vista magnífica sobre o Tejo. Percorremos cerca de sete minutos até chegarmos ao bar, onde fomos calorosamente recebidos pelos empregados de mesa. A empregada que nos atendeu foi extremamente gentil, demonstrando um serviço impecável. Enquanto escolhi um mojito, as madames optaram por um smoothie de morango e framboesa, e, em consenso, decidimos pedir uma tábua de petiscos, que era uma verdadeira festa para os sentidos. A tábua era composta por uma variedade de ingredientes, como queijos, presuntos, fiambre, uvas frescas, passas, figos, mel, pão e outras delícias que nos faziam salivar de antecipação.
Enquanto saboreávamos os petiscos, o meu olhar se voltava para as madames, que exibiam um brilho radiante nos seus semblantes. Pareciam duas pequenas estrelas iluminando o caminho de um pescador solitário perdido no vasto oceano na sua humilde canoa. Beleza e fragrância exalavam dos sorrisos, e eu sentia-me um tanto deslumbrado, sem conseguir decidir em qual dessas imagens fixar meus olhos. Capturamos aquele momento não apenas nos nossos telemóveis, mas também nas nossas memórias, como uma recordação preciosa. Por um instante fugaz, senti-me apaixonado pelas duas mulheres diante de mim, cada uma com sua singularidade, seu toque especial, que tocaram meu coração de maneiras únicas.
Inicialmente, tínhamos a intenção de jantar num restaurante após o aperitivo, porém, os petiscos revelaram-se tão requintados e satisfatórios que nos sentimos plenamente saciados, deixando espaço apenas para uma sobremesa. As madames estavam ansiosas para visitar a Fábrica dos Pastéis de Nata, localizada próxima à estação de metro dos Restauradores, a fim de degustarem essas maravilhas doces. Sem hesitação, seguimos para a estação de metro Santa Polónia, embarcamos e rumamos aos Restauradores. Na pastelaria, elas saborearam com deleite essas delícias. Quanto a mim, optei por não pedir nada, mas Elisabeth insistiu para que eu experimentasse algo. Para satisfazê-la, pedi uma água das pedras com limão, que proporcionou um frescor revigorante e auxiliou na digestão.
À medida que a noite avançava, o silêncio fez-se presente pelas ruas. Os bares e restaurantes fechando um atrás do outro, tornando percetível que chegara a hora das nossas despedidas, muito embora, meu desejo mais profundo era que aquele momento único pudesse se prolongar indefinidamente, assim, continuei a caminhar com elas até o hotel onde estavam hospedadas. No trajeto, nos deparamos com um jovem rapaz com quem eu já havia conversado ao longo de muitos anos sobre a verdadeira essência da vida. As minhas duas convidadas não hesitaram em compartilhar e encorajar o jovem rapaz a buscar aquilo que realmente possui valor e torná-lo sua prioridade máxima. Foi nessa ocasião que ouvi Raquel, com palavras doces e amáveis, compartilhando seu testemunho sobre sua própria vida até alguns meses atrás. As suas palavras foram sábias, delicadas e não tinham a intenção de condenar ou ferir os sentimentos do rapaz. Ao final, ouvi o jovem afirmar que aquelas palavras tocaram profundamente o seu coração.
Continuamos a caminhar, mergulhados em conversas que iam e vinham como as marés, até que a noite, enfim, se esvaiu em despedidas. Pelas ruas que, pouco a pouco, adormeciam, seguimos em silêncio, como se cada passo marcasse o fim de algo que não queríamos nomear.
No último instante, abraço-as com a certeza de que certas memórias, como versos bem escritos, jamais se perdem. Em Lisboa, os amores e as paixões chegam e partem — uns devagar, outros abruptamente — e, muitas vezes, não nos deixam sequer tempo para um adeus.
Mas no meio do caos que reinou por dias, algo inesperado aconteceu. Como uma estrela cadente rasgando a noite, um ser vindo de terras distantes apareceu entre a minha janela.
Quem era ela?